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terça-feira, 24 de junho de 2014

De volta a Covent Garden

Francisco tinha decidido ir até Covent Garden.
Era um outro item das visitas a lugares que queria rever.
Lembrava que costumava ir lá mas já não sabia bem o motivo.
Seria pelo movimento?
Naquela ocasião seus interesses talvez fossem outros, interesses que hoje possivelmente já não tinha.
Sua idéia inicialmente foi de ir pela manhã mas atrasou-se e acabou saindo só depois do meio-dia.
Fazia calor, Francisco andou algumas quadras e mudou de idéia.
Decidiu ir depois da reunião de inglês.
Já era, portanto, seis e meia quando dirigiu-se para Covent Garden.
Aproveitaria para pegar o movimento de fim do dia do centro em Londres e evitaria o calor.
Tomou o metro em Colliers Wood e fez, como de costume, a transposição em Kennington para ir até Leicester Square.
Chegou a pensar em descer em Charing Cross e dali seguir caminhando até Leicester Square.
Mas decidiu encurtar o trecho que faria a pé.
Desceu, pois, em Leicester Square junto a Charing Cross Road , rua ao longo da qual sucediam-se livrarias. Entre elas, no entanto, já não existia a do número 84 da qual ainda procurara, outro dia, encontrar vestígios.
Dali caminharia um pequeno trecho para chegar em Covent Garden.
Nas ruas uma multidão agitava-se movida por interesses que pareciam os mais diversos e inumeráveis mas que, ao fim, talvez se reduzissem a um número bem restrito. Encerrar as atividades diárias, talvez dedicar uns minutos a reunir-se com amigos num dos inumeráveis pubs que se concentram nos arredores ou simplesmente retornar para casa o mais cedo possível.
Numa esquina viu num pub uma bandeira brasileira bem à vista.
Aliás, a julgar pela quantidade de coisas que se encontra referentes ao Brasil por motivo da Copa, poderia pensar que não tinha saído do país.
Continuou caminhando e ainda precisou pegar uma informação na esquina da Covent Garden Station mas já estava chegando.
Percorreu os últimos metros e finalmente, depois de tanto anos, lá estava Covent Garden Market diante de seus olhos.
Parecia mais  repleto de comércio, de lojas, bem parecido com um shopping.
E foi esta a sensação que foi se reforçando à medida que percorria o interior a ponto de se perguntar, o que estou fazendo aqui?
Era o mesmo lugar, talvez até nem tivesse mudado tanto, Francisco é que poderia ter mudado.
Depois de caminhar um tempo, decidiu conferir se os sanitários, pois precisou de um, mantinham-se os mesmos.
Tinha uma lembrança disto, ficavam no subsolo, numa área lateral , mas fora do mercado.
E efetivamente lá estavam.
Finalmente algo que conferia com a lembrança que tinha!
Talvez porque , na ocasião anterior e nesta, a necessidade fosse a mesma.
Depois ainda ficou perambulando um pouco no meio do povo que ocupava o Mercado.
Numa parte do subsolo abrigando um restaurante ocorria um concerto.
Um grupo executava música clássica e , no mesmo instante, seu sentimento em relação ao ambiente se tornou mais positivo.
A seguir uma cantora, presumo que Fabienne Borget pois havia cartões em alguns lugares,  interpretou uma ária da La Bohème de Puccini, pareceu-lhe Quando m'en vo' soletta
É o que estava faltando para enternecer-se. 
Sentiu-se comovido tanto pelas lembranças que evocava quanto pela cantora, que enchendo o amplo espaço aberto do local com sua voz de intérprete lírica, conseguia sobressair-se ao ambiente comercial predominante. 
Mas queria voltar.
A não ser pela emoção do concerto e pela reminiscência dos toilets  não encontrava nada que pudesse, naquele momento, representar algum tipo de referência e prendê-lo ao local.
Retomou, portanto, o caminho de retorno.
Antes de chegar à estação de Leicester uma chuva.
Inicialmente fraca, uma leve chuva de verão em Londres, depois mais forte.
Correu e chegando à estação incorporou-se à multidão que pensara não encontrar mais naquele horário, já depois das oito.
Mas nenhum sobressalto, até aquele momento tinha do metro de Londres uma experiência extremamente positiva.
Quando entrou no trem e ele partiu precisava apenas deixar seu corpo ser levado enquanto sua mente buscava reencontrar-se com suas referencias.
O metro exercia sobre ele tipos diferentes de reação.
De um lado uma quase repulsa por uma certa sordidez do ser humano ter que se movimentar dentro de túneis escavados a muitos metros de profundidade numa espécie de mina, todos os dias, normalmente quase uma vida inteira, para ir de um lugar para outro, especialmente para os locais de trabalho.
Mas, por outro, um tipo de fascínio por entranhar-se num mundo onde o ser humano encontrava-se tão exposto, tão frágil quase, numa condição de ser subjugado a cumprir um ritual de sobrevivência.

-Waterloo !
Era o nome da segunda estação, já tinham passado por Charing Cross, que pelo alto-falante anunciavam.
Francisco naquele momento lembrou-se de sua mãe, do que comentava sobre o filme Waterloo Bridge , ao qual ela se referia como A Ponte de Waterlô, com Vivien Leigh, e Robert Taylor e gostava de cantarolar a canção.

A viagem prosseguiu.
Algumas pessoas simplesmente deixavam-se ficar, como anestesiadas, aguardando o momento de descer. 
E sempre encontrava-se quem procurasse ler. 
Um livro, o jornal London Evening Standard  , de muito boa qualidade, que era distribuido gratuitamente na entrada das estações.
Outro dia deparou-se com uma moça que lia Kafka. Não conseguiu perceber qual o título e teve uma vontade enorme de interpelá-la mas estava um pouco distante e não se sentiu à vontade para tentar.
Outros passageiros pareciam dormir.
Mas de fato não dormiam ou se dormiam, não perdiam a consciência de onde tinham que descer.
Aliás nunca sabia nestes casos se as pessoas estavam adormecidas ou meditavam.
Em alguns momentos pareciam meditar.
Ou talvez as duas duas coisas ao mesmo tempo.

- Kennington !
Era aqui que tinha que descer para fazer a baldeação para Colliers!
Desceu e atravessou os metros que separavam do outro trilho.
Mas uma multidão desceu também.
Um grupo de japoneses ainda ficou dentro do trem sem perceber que a linha terminava ali.
Quando o trem seguinte chegou já vinha lotado.
Não queria ir em pé, decidiu aguardar o seguinte.
Em menos de cinco minutos já estava chegando e, desta vez, pode encontrar um lugar sentado.
Olhando em volta sempre encontrava pessoas que liam, dormiam ou conversavam quando não se encontravam sozinhas.
Ou talvez, de olhos fechados, meditassem como parecia por vezes.
Ainda não tinha visto ninguém falando sozinho.
Lembrou-se que sua sobrinha, com sua coragem e sua determinação, fazia aquele trajeto todos os dias, como uma autêntica inglesa, de saia, meias pretas e sapatilhas ballerine também pretas.

-Stockwell !

Este trecho final da linha para Merton já era rotina.
Clapham North , Clapham Commom e Clapham South sucederam-se como um trio.
Lembravam-lhe a Santíssima Trindade e era com certo alívio que via o trem chegar na seguinte

- Balham !
Isto indicava que faltava apenas passar pelo duo de Tooting, Tooting Bec e Tooting Broadway, para finalmente chegar a Colliers Wood.

- Tooting Bec!
O trem arrancou e, fechando os olhos, ouvia embalado pelo sacolejar dos vagões, um som que era uma mistura de um ronco que lembrava um furacão bem próximo com os estalidos e entrechoques de massas de aço
                                                      - Tooting Broadvay !
                                                                                                     Pôs a mão na måquina fotográfica e na mochila para tê-las bem seguras e preparou-se para descer. 
Colliers era a próxima parada. 
Qualquer dia talvez se dispusesse em ir até Merton, a última estação.
Tinha um misto de curiosidade e fascínio pelas estações de fim da linha.
Quando anunciou-se Colliers desceu, adentrou no corredor central e subindo a escada rolante, chegou no saguão. Ali sempre corria um vento forte.
Passou o Oyster pela cancela e saiu.
Lá fora, na esquina com a Merton High Street, depara-se com o vulto negro do "Colliers Wood Tower" que está incluído entre os edifícios mais feios de Londres e que assombra, com sua desproporção, tudo que o rodeia a uma larga distância.
Ainda teria que passar no mercadinho para comprar mantimentos.
No apartamento os gatos o esperavam, talvez exceto Homer que saía a passear e não tinha hora para voltar.
Estava em Londres mas Francisco tinha a sensação de que era como estar em qualquer lugar do mundo.
E, ao mesmo tempo, de que estaria preparado para ir aonde quisesse, de que poderia dentro do tube adormecer e ultrapassando a estação de Merton acordar num lugar imprevisível bem distante de tudo.


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